Venezuela
Plata
Pronúncia fonética: pláta
Língua: Espanhol (da América Latina)
Significado: Dinheiro




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“Num país em que me dão primeiro o número de contribuinte e só meses depois o cartão de cidadão e carta de condução, como é que uma empresa que fecha hoje pode abrir amanhã com outro número fiscal? Como é que fábricas com tanto dinheiro têm chefes com tão pouca educação, que não podem ver uma pessoa parada um segundo que a chamam logo a reclamar, como se fosse escrava? Porque é que o Estado paga mais de subsídio de desemprego do que de pensão de reforma? E porque é que a uma persona grande não se dá trabalho? Então andei eu a acumular experiência ao longo da vida e agora não a valorizam?”. Tudo isto Giuseppe questiona ao refletir sobre Portugal. E depois pensa: “Aqui ninguém tem medo de andar na rua”. .
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Giuseppe Fazio
Natural de Puerto Cabello, na Venezuela
61 anos
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A vida de Giuseppe começou com uma série de equívocos. Primeiro foi o pai que se esqueceu da sua data real de nascimento e que um ano mais tarde, no devido registo civil, a indicou como sendo o dia 19 de novembro, quando afinal era o 13 do mesmo mês. Depois foi também a conservatória que, em vez que lhe atribuir o sobrenome italiano da mãe, Passanisi, o registou para sempre com a grafia errada de Passanife. Mais tarde houve ainda embaraços traumáticos que prefere não recordar, mas que o tornaram quase mudo durante toda a adolescência; seguiram-se anos de dedicação à igreja na expectativa de se tornar padre embora um superior lhe dissesse que ele não seria rapaz para cumprir o voto de castidade; e houve ainda a tentativa frustrada de casar com uma italiana, como a mãe pretendia, para afinal acabar apaixonado por uma portuguesa – que a mãe também começou por rejeitar para afinal, “valha-nos ao menos isso!”, acabar totalmente rendida ao charme luso.
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Essas partidas da vida poderão explicar que Giuseppe reconheça, numa mistura de Português e Espanhol: “Eu era muy malo. Eu e o meu irmão destruíamos quase tudo, estávamos sempre a arranjar problemas… Eu era péssimo nas aulas e a loucura foi tal que cambiamos seis vezes de escola porque nenhuma nos queria aceitar, por mala conduta”. Neto de italianos que emigraram para o centro da Venezuela durante a depressão que se seguiu à II Grande Guerra e filho de um reparador de barcos pesqueiros e de uma dona de casa, Giuseppe era o irmão mais velho entre dois rapazes e duas raparigas, mas, em Puerto Cabello ou em Punto Fijo, para onde a família se mudou ainda na sua infância, estava longe de ser o mais responsável e as séries de TV da época estimulavam-lhe o arrojo. Um dia, tinha então 8 anos, desfez uma vassoura, separou o cabo da escova, levou uma ponta da madeira ao lume e depois, virando-se para o irmão, desenhou-lhe com a ponta incandescente um Z no peito, junto à omoplata. “Ele estava com uma camisola de alças e aquilo queimou roupa, queimou pele, queimou tudo!”, recorda. Os uivos de dor foram tantos e o estrago tão vivo que a mãe só pegou no cabo da vassoura para o partir com força no braço de Giuseppe e ele ainda levou segunda tareia quando o pai se chegou à festa. Mas na história não há ponta de azedume e o espadachim remata: “O meu irmão ainda lá tem a cicatriz do Zorro. E ainda hoje nos reímos de eso”.
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Após três anos de internato, sempre partilhados com o irmão apesar das suas personalidades “tão opostas quanto o sol e a lua”, Giuseppe tirou na faculdade o curso de técnico de produção industrial. “Depois comecei a trabalhar, a receber plata, e fui para os Estados Unidos três meses aprender Inglês”, revela. Foi no regresso que a mãe decidiu casá-lo: na primeira festa a que o levou ele escolheu mal – achou graça à tal venezuelana; na segunda tentativa parecia que ele também não acertara – caiu de amores pela portuguesa, que “era muito tímida, muito bonita ao natural, sem maquilhagem nenhuma” – mas passados uns meses a mãe deu o braço a torcer e lá reconheceu que o moço tinha encontrado em Elisabeth, madeirense, uma esposa à altura.
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Pouco tempo após o casamento, já Giuseppe fazia carreira como empresário da construção civil, construindo, vendendo ou alugando lojas e apartamentos em Punto Fijo. E tudo foi correndo bem, inclusive como proprietário também de um supermercado, até que “o governo de Chávez começou a deixar o país cada vez pior, com uma inflação impossível, muita gente na miséria e preços tão loucos que a gasolina é de graça, mas os empregados dos postos de combustível pedem pão em troca porque os alimentos mais básicos custam fortunas”. O preço da farinha de milho, essencial para as típicas arepas, aumentou 900% em 2016, por exemplo, chegando a custar o equivalente a 125 euros no mercado negro.
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Sem ilusões quanto ao rumo do país, primeiro foram os pais de Giuseppe que partiram para Itália, depois os filhos que rumaram ao Panamá e em seguida a esposa que foi ao encontro deles, já com ideia de prosseguir viagem para Portugal, onde a família da nora tinha um apartamento fechado há 25 anos, em Albergaria-a-Velha. Com a morte de Hugo Chávez em 2013, “tudo ficou pior”. Giueseppe ainda tentou resistir, por amor ao país, aos seus negócios e ao irmão que ficava para trás a tentar manter vivos os seus dois hotéis, mas um dia fez a mala, meteu-se no avião para o Panamá e, ao chegar ao destino, já nem a mala tinha. “Ela despareceu depois do embarque na Venezuela e eu fiquei com uma mão à frente e outra atrás”, recorda. Como se não bastasse, acabou retido no aeroporto devido ao controlo policial e foi no interior do edifício que esperou pela família, até que todos embarcaram para um Portugal que o recebeu no inverno de 2017, “cheio de frio, sem casaco nem roupa para aquele tempo”.
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Cá, foi bem acolhido, até porque tem uma aparência “de português”, mas diz que o tratam com maior frieza quando revela que é venezuelano. “Parece que pensam que lhes vou tirar o emprego, quando a verdade é que nós ficamos é com os empregos que os portugueses não querem”, argumenta. “Quem é que quer processar 150.000 frangos por dia num aviário, no meio do frio, da meia-noite até às 9, 10 ou 11 da manhã?”. Giuseppe andou “morto nos primeiros três meses”, depois habituou-se e aguentou um ano e quatro meses, até arranjar outro emprego numa fábrica de cartão onde só lhe deram contrato para um trimestre. Ficou a saber o que é o desemprego, mas continua a não perceber o mercado laboral português: “Num país em que me dão primeiro o número de contribuinte e só uns meses depois é que tenho cartão de cidadão e carta de condução, como é que uma empresa que fecha hoje pode abrir amanhã no mesmo sítio, com outro número fiscal? Como é que fábricas com tanto dinheiro têm chefes com tão pouca educação, que não podem ver uma pessoa parada um segundo ou a falar com um colega que a chamam logo a reclamar, como se ela fosse uma escrava? Porque é que o Estado paga mais de subsídio de desemprego do que de pensão de reforma? Isso não é estimular as pessoas a não trabalharem? E porque é que a uma persona grande não se dá trabalho? Então andei eu a acumular experiência ao longo da vida e agora não a valorizam?”. Sem petróleo, mas com “um turismo bárbaro”, “Portugal devia ser uma Suíça em que tudo funciona bem, em que não se abandona a agricultura e em que as universidades só abrem cursos para áreas em que há emprego”.
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Apesar dessas incongruências, Giuseppe diz que, neste país à beira-mar plantado, “Santa Maria da Feira é o paraíso”. Se nas principais cidades da Venezuela “não se vê ninguém na rua, não se pode usar telemóvel nem colares a caminhar, não se pode falar à vontade em público e metade das lojas estão fechadas” ou a render apenas uns míseros 20 euros por mês, como acontece com o espaço de 200 metros quadrados que o venezuelano deixou para trás, isso só realça, por contraste, a bonomia da Feira. “O sistema de transportes é fraco e, se quiseres ir a outra cidade, tens que usar o carro para todo o lado – o que não é difícil, ok, porque em Portugal há facilidade de crédito para comprar um – mas isto é uma maravilha. A cidade é tranquila, é segura, é limpa, é boa para educar crianças… Tem cultura, tem espaços verdes, tem desporto, tem um hospital. Aqui ninguém tem medo de andar na rua”.
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Quando se permite, Giuseppe sonha com um emprego que o faça voltar à construção civil ou trabalhar num aeroporto “entre o ruído dos aviões e o cheiro da gasolina”. É apaixonado por aviação e só lhe faltam 24 horas de voo para obter o brevet de piloto, mas também tem o curso de chefe de cozinha, pelo que todos os dias confeciona refeições como “frango com pimenta e limão, acompanhado por plátano e abacate”. Elogia o pão português pela variedade, surpreende-se a cada constatação de que “tudo em Portugal leva ovos” e espera que todos “os três milhões de venezuelanos a viver fora do seu país” possam ter encontrado nas novas moradas a mesma sorte que ele sente quando faz caminhadas pela Feira. Apesar das imperfeições e imaturidades do país onde hoje vive, está-lhe grato. “Portugal é outra cultura, é outra educação. Aqui educam-te para seres um cidadão. Se conduzes, ensinam-te a parar na passadeira. Na Venezuela, o carro não pára... O mais provável é que acelere”. â–
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