Angola
Chipala
Pronúncia fonética: chipála
Língua: Quimbundo (língua banta de Angola)
Significado: Cara, rosto, face
Pedaço de carvão, bocado de asfalto, negrume que antecipa chuva. Chamaram-lhe de tudo, fizeram-lhe pior e, ainda assim, na sua gargalhada não há azedume. Perdeu a mãe logo ao nascer e viria a perder muito mais ao longo da vida, mas cresceu entre amor alentejano e alimentou-se de solidariedade. Entre os fados que canta, ainda não descobriu um que tenha a sua história na letra. Mas a sua assinatura, como num prenúncio, diz tudo. Nome: Rosário. Sobrenome: Felicidade.
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Rosário Felicidade
Natural de Gabela, em Angola
71 anos
Dizem que foi a primeira mulher negra a viver na cidade da Feira. Uns chamaram-lhe “pedaço de carvão” e “bocado de asfalto”, outros diziam à sua passagem que “vai chover”, certas mulheres olhavam-na de soslaio com receio de que o seu appeal africano lhes pudesse roubar os maridos e até as crianças foram aprendendo a repetir os abusos que ouviam aos pais. Rosário aprendeu a dizer piadas sobre si própria como forma de resistência e optou por não se deixar magoar. “Cria-se uma capa e vai-se calejando, porque há por aí gente muito desagradável, inculta e estúpida. Mas também há pessoas muito boas e eu prefiro pensar nas coisas positivas que me fizeram”, conta hoje.
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Rosário nasceu em Gabela, em Angola, quase sozinha. A mãe morreu logo após o parto na sequência de uma hemorragia grave e a bebé ficou no hospital quase abandonada, despertando a preocupação de parturientes que viam a enfermeira de serviço negligenciar a pequenina ao roubar-lhe o próprio leite com que a devia alimentar. Este podia ter sido o péssimo início de uma história ainda pior, mas foi essa própria incúria que colocou Fátima, uma segunda enfermeira, no caminho da menina. O pai de Rosário trabalhava na apanha do café, Fátima foi velando pela menina e afeiçoou-se a ela de tal forma que pouco depois propunha ao homem educar-lhe a filha. Ele até terá ficado aliviado e foi assim que a menina acabou adotada por duas brancas do Alentejo – Fátima e a mãe, Joaquina. O pai foi rareando as visitas à casa nova, ao fim de dois anos o elo genético perdeu importância e a certa altura essa ausência deixou de ser tema. Por isso é que Rosário tem pouco vocabulário em Quimbundo e mal conhece os dialetos angolanos: “Todos lá em casa eram brancos e foram eles que me criaram. Até havia quem dissesse que eu fiquei com a mania que era branca, mas a questão é que a minha mentalidade sempre foi europeia. Nunca gostei de andar descalça como outros angolanos, nunca fui de fazer trancinhas no cabelo, nunca apreciei danças africanas…”. Rosário sempre se sentiu “uma negra da CEE”, torce pelo Benfica e, nas suas noites de karaoke, é Amália que mais canta.
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Esses gostos ficaram-lhe gravados de forma mais intensa ao primeiro contacto efetivo com Portugal. Quando Rosário cá veio a primeira vez, em 1963, então com 14 anos, adorou a modernidade, passeou Lisboa, apaixonou-se pelo Porto, fez amigos que ainda hoje a acompanham e, se é verdade que já nessa altura era encarada como uma excentricidade, nessa fase viam-na sobretudo como um bom augúrio. “Nas festas da Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, apareceu-nos um casal com um monte de filhos – com aquele paleio do ‘Ai uma pretinha! Vai dar-nos sorte!’ – e eu tive que dar beijos àquela gente toda, mesmo com os piolhos a verem-se na cabeça dos miúdos”, recorda. Em 1981, na segunda visita ao país e já em fuga de uma Angola em guerra pela independência, é que se tornou mais pesado o desdém com que lhe atiravam o “retornada”. Rosário ainda se sente magoada, por exemplo ao lembrar uma certa véspera de Natal, quando, ao pagar a despesa num supermercado de Matosinhos, percebeu que lhe faltavam cinco escudos e, mesmo pedindo à funcionária que guardasse a mercadoria enquanto ia buscar a moeda a casa, ela a insultou com uma violência brutal, em termos que não vale a pena detalhar. “Um casal atrás de mim viu tudo, disse à funcionária que pagavam as minhas compras e ainda perguntou se eu queria mais alguma coisa”, continua Rosário. “Não quiseram agradecimento nem o dinheiro de volta; disseram que só queriam que eu tivesse um bom Natal”. (As lágrimas controlam-se ainda hoje... Passe-se adiante. A reter, só isto: “Tive tanta gente maravilhosa que isso me fez esquecer os outros. Houve uma altura da minha vida em que eu nem era a pessoa mais correta, andava meia maluca, e alguns até ficaram chateados comigo, mas já passou. Só contam as coisas boas”).
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Os planos de Rosário passaram a incluir Santa Maria da Feira porque foi aí que a família arranjou trabalho. No seu caso, primeiro houve muita lida doméstica em lares alheios; mais tarde vieram os dias de babá. “Tinha três bebés em casa ao mesmo tempo e punha-os a ouvir a Rádio Renascença todo o dia, das sete da manhã até à hora a que os pais saíssem do trabalho. Foi a fase mais feliz da minha vida”, avalia. “Eles lá cresceram e fizeram a sua vida, mas estão bem e todos são meus amigos. Alguma coisa ficou”.
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Os dias agora passam-se em pequenos serviços, a fazer bolinhos para as visitas, a participar em ações que retribuem a solidariedade que recebeu, a cantar com amigos e também a namorar, sempre num jeito próprio em que Rosário cruza flirt, humor e ironia com uma frontalidade típica do Norte. Uma vez por ano há festa em Mogofores num encontro de africanos e portugueses que trocaram Gabela por terras lusas, mas a negra da atual UE não tem qualquer desejo de rever Angola. “Não volto lá mais. Vim muito desiludida”, assegura, num desabafo que inclui referências à empresária Isabel dos Santos e aos processos judiciais que a envolvem. “Diziam que a mudança era para levar o país para a frente e afinal foi tudo uma farsa! Qual é o interesse da outra sujeita em acumular tanta coisa quando sabe que o povo está a morrer à fome? Precisa daquilo tudo? Foi para isto que correram com os europeus? Para ficar tudo pior?”. ■​
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