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Brasil
Bala
Pronúncia fonética: bála
Língua: Português (do Brasil)
Significado: Projétil de arma de fogo; Rebuçado
 
 
Violência e criminalidade são temas recorrentes na atualidade noticiosa do Brasil. Convive-se com essa realidade no quotidiano, mas, como as armas não disparam rebuçados, Fernanda trocou a insegurança de São Paulo pela tranquilidade de uma cidade com um castelo de rainhas e princesas. Está agora a descobrir os encantos da democracia participativa e da cultura para todos. Já não compra balas no supermercado... 

 

 

Fernanda Daniele
Natural de São Paulo, no Brasil
42 anos
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Não há como evitar a questão: o principal aspeto a motivar a mudança de Fernanda para Portugal foi o índice de criminalidade de São Paulo, sua cidade natal e uma das mais populosas do mundo. Gestora de projetos, consultora bancária e agora agente imobiliária, viveu temporadas em cidades tão distintas quanto Londres, Zurique e Miami, mas sempre foi em solo brasileiro que se sentiu menos segura. Quando se tornou mãe, em 2012, houve então que tomar decisões. “Uma coisa é a nossa vida e outra bem diferente é sermos responsáveis pela vida de outra pessoa”, argumenta.

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Fernanda podia ter escolhido qualquer lugar do mundo, mas Portugal revelava-se a escolha natural por duas razões: a facilidade da língua e o facto de o país já acolher a sua irmã, que se mudara para Santa Maria da Feira devido a parcerias empresariais que o marido estabelecera com portugueses. Foi essa irmã, portanto, a primeira a instalar-se na cidade e a adaptação foi rápida, apesar da demora excessiva no processo de reconhecimento das suas competências académicas, sem as quais não podia exercer medicina em Portugal. Uns dois anos depois, era Fernanda que se despedia do marido e da filha em São Paulo, mas não atravessava o Atlântico: optou por vê-los rumar a Portugal enquanto ela própria se deixava ficar no Brasil a tratar de burocracias e a ultimar a mudança definitiva.

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Antes de também Fernanda viajar para Santa Maria da Feira, no final de 2018, falava com a família por telefone ou pela internet, e ia perguntando as novidades. A pequena Isabela contava-lhe que já tinha escola, que conhecera outras crianças, que alguém lhe oferecera rebuçados. “Rebu quê? Que é isso, filha?”, perguntou, à distância. “É ‘bala’, mãe! Rebuçado é o que chamam à nossa ‘bala’”. Foi essa, portanto, a primeira expressão que Fernanda registou como diferente no uso da mesma língua. Refletindo sobre ela mais tarde, sentiu-se aliviada por não ter vivido o inverso: seria bem pior uma mãe portuguesa ouvir do filho no Brasil “Comprei balas”. Com que rapidez e angústia todo um cenário de violência armada desfilaria pelo cérebro (e coração) dessa mulher!

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Após décadas de telenovelas e anos de tutoriais no YouTube com pronúncia brasileira, por cá todos parecem saber o que é um ônibus, um caçula, um celular e uma van. Já para um brasileiro, o fluir da conversa pode interromper-se na primeira referência a autocarro, miúdo, telemóvel e carrinha. Depois há ainda a conversão de “treinamento” em “formação”, “cadarço” em “atacador” e números de telefone que antes exibiam uma “meia” pelo meio e agora a substituem por um "seis". “A expressão ‘fazer um bico’ também gerou risada”, recorda Fernanda, com algum embaraço. É que em Portugal, mais do que para mímica ornitológica ou beicinho de birra, isso remete para sexo, enquanto no Brasil é só sinónimo de “realizar trabalho freelancer”.

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Divertimentos linguísticos à parte, Fernanda descobriu na Feira um quotidiano idêntico ao das cidades do interior do Brasil, com a vantagem de essa pacatez ser regularmente agitada por eventos de grande dimensão. “Sou uma pessoa enérgica e adoro a Viagem Medieval, a Festa das Fogaceiras, o Perlim”, diz com entusiasmo. “Gosto de morar numa cidade com um castelo, que é coisa de princesa e de rainha, e adoro os eventos a céu aberto, porque nunca tive disso no Brasil – pelo menos não a preços acessíveis como aqui”.

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Saudades tem do calor do seu país tropical, dos doces e sobremesas com nomes diferentes dos nossos, e, em termos mais práticos, dos estabelecimentos comerciais de funcionamento contínuo, sem paragem para o almoço. “Em São Paulo a gente fazia compra a qualquer hora e aqui tem que esperar. Então o maior choque foi em Agosto: tudo, tudo fechado!”.

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Claro que Fernanda também sente falta dos amigos paulistas que não pode abraçar pela internet, mas rapidamente fez amizades em Portugal. Mesmo notando que certas pessoas se retraem um pouco ao descobrir-lhe o sotaque brasileiro, não deixa que isso a perturbe e foca-se nas questões positivas. “Sempre preferia olhar o copo meio cheio”, confessa. Além disso, acompanhou de perto o processo eleitoral do Jovem Autarca de Santa Maria da Feira, envolvendo várias escolas do município, e isso confirmou-lhe que eventuais reticências desaparecem efetivamente com a convivência: “Sou tia-galinha e cheguei a pensar que não reconhecessem o mérito do meu sobrinho só pelo facto de ele ser brasileiro, mas ele acabou ganhando mesmo a eleição e foi um orgulho enorme! Ele é muito informado e estudioso, diferencia-se por debater tudo com profundidade e eu fiquei muito orgulhosa!”.

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Essa descoberta das diferenças é caminho que se faz nos dois sentidos. No Brasil, todos os portugueses que Fernanda conhecia eram donos de padarias e ela sempre ouvira dizer que as mulheres lusas tinham buço. Aqui, constata sem grande surpresa que esses são mitos e descobre coisas ainda melhores: “É impressionante todo o cuidado dos professores em acolher os nossos garotos. A atenção que a minha filha recebe da professora aqui na escola pública é coisa que, no Brasil, só se conseguiria em escola privada!”. Se lá a política estatal deixa tanto a desejar, não será surpreendente que também a gestão autárquica esteja longe dos padrões de participação cívica que cada vez mais se impõem em Portugal e na Europa, como se pode avaliar até nos exemplos mais mundanos. “Tivemos uma experiência incrível na Quinta do Castelo, com a plantação de árvores para reflorestar todo o espaço”, conta Fernanda. “Esse envolvimento na atividade do município não é habitual no Brasil e eu achei que foi algo realmente especial. Foi realmente fazer parte da história do local”.

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Essa proximidade é bem-vinda e condiz com uma postura geral de afabilidade que garante aos portugueses a reputação de um dos povos mais hospitaleiros do mundo. Ao fim de um contacto mínimo, as diferenças de tratamento esbatem-se e as conversas passam um registo menos formal. “Tudo ótimo, mas, quando me dizem ‘trata-me por tu’, eu não posso fazer isso”, desabafa Fernanda, preocupada com a possibilidade de magoar alguém. “Brasileiro trata todo mundo por você! É um vício da língua – não há como mudar!”. Não é desculpa nem desagrado, portanto. E há décadas de telenovelas brasileiras a demonstrá-lo. â– 

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