Itália
Condividere
Pronúncia fonética: condi-vídéré
Língua: Italiano
Significado: Partilhar
“Mostra-me a tua língua”, pediu-lhe certa vez um menino. Gabriella acedeu, esticou a língua para fora da boca, o miúdo apreciou-a bem e franziu os olhos com ar de dúvida. “A tua língua é igual à minha… Porque é que tu falas diferente?”. Diálogos em Português e Italiano tornam-se mais fáceis com a partilha. A partilha do conhecimento, a partilha do tempo, do espaço íntimo, das dores alheias... Gabriella partilha tudo com as crianças que os tribunais lhe confiam. Qualquer que seja a Língua em que se expresse, não tem como fugir ao diálogo. Nem quer.
Gabriella Cortinovis
Natural de Roma, em Itália
69 anos
Obediência e entrega. Foram estes os votos de Gabriella Cortinovis quando, ainda jovem, se tornou freira ao serviço das Irmãs Passionistas de S. Paulo da Cruz, uma congregação de origem italiana fundada em 1815. Extrovertida e enérgica, tinha cerca de 40 anos quando as suas superioras a destacaram para ajudar as irmãs espanholas que abriram uma missão em Santa Maria da Feira e foi assim que se mudou para Portugal, onde essas primeiras Passionistas começaram por criar um centro de dia para idosos e depois se especializaram no acolhimento de menores retirados às famílias por ordem judicial.
Após uma viagem de comboio que durou três dias, a italiana de olhos azuis acizentados deu por si numa zona urbana então rodeada apenas por matos, mas descobriu-se envolta por pessoas que ainda hoje descreve como “quentinhas, acolhedoras, simpáticas”. Entre as semelhanças com a sua terra natal destacou-se no imediato a “mentalidade e abertura” dos portugueses; quanto às diferenças, o que contrastou com os costumes “mais restritivos e familiares” da sua terra natal foi sobretudo “o hábito de as pessoas terem reuniões e atividades durante toda a noite”.
Gabriella focou-se então em aprender a língua, numa tarefa que reconhece facilitada pela raiz latina comum tanto ao Italiano como ao Português, mas durante anos ainda hesitava sempre que alguém lhe pedia para fazer coisas no quarto. “Querem que eu vá ao quarto piso?”, pensava ela, até se lembrar que, em Português, “quarto” também significa “espaço para dormir”. Calendarizar tarefas era outro problema: “Vamos amanhã” parecia-lhe um absurdo fora das refeições, porque “magná”, que tem quase a mesma sonoridade, é dialeto romano para “comer”.
As árvores também a atraiçoavam, por cá serem de género feminino ao contrário do que acontece em Itália, e depois havia ainda aquele palavrão iniciado por M que “aparecia em todas as frases dos portugueses”, tão mais monótono e repetitivo do que o léxico insultuoso dos italianos. As diferenças eram algumas e interrompiam o fluxo das conversas, é certo, mas foi o predomínio das semelhanças a permitir que, após 30 anos em Santa Maria da Feira, Gabriella ainda hoje continue a falar sobretudo em Italiano e todos a percebam (quase) totalmente. Os adultos acham-lhe graça à pronúncia e tornam-se até mais solícitos, sobretudo se a veem trajar de hábito. Houve até quem a pedisse em casamento sem levantar objeções aos obstáculos linguísticos, só cativado pelos seus olhos claros e calorosos, e pela sua beleza discreta, de traços raros por estas paisagens. Quem mais estranha as suas frases com vogais bem abertas e palavras italianas desconhecidas são, portanto, as crianças, que, por vezes, se deixam ficar boquiabertas e são até serenadas pelos esses termos desconhecidos. “Mostra-me a tua língua”, pediu-lhe certa vez um menino. Gabriella acedeu, esticou a língua para fora da boca, o miúdo apreciou-a bem e franziu os olhos com ar de dúvida. “A tua língua é igual à minha… Então porque é que tu falas diferente?”.
Se dessa vez foi a freira que lhe deu uma aula de geografia, mais frequente foi ser ela a retirar ensinamentos dos livros das crianças, à medida que as ajudava na realização dos trabalhos de casa fixados pela escola. Essa é uma das razões, aliás, pelas quais a Passionista identifica “condividere” como a palavra que melhor retrata a sua vida em Santa Maria da Feira: “A realidade é que passamos a maior parte do tempo em casa, nos hospitais e nos tribunais, que são os sítios que visitamos mais frequentemente. Temos que partilhar o tempo, partilhar o espaço, partilhar as dores… Tudo aqui é partilhado”.
O seu relógio rege-se pela vida das crianças que estão à guarda do centro de acolhimento, seja por apenas alguns meses ou por longos anos. Não sobra grande margem para prazeres pessoais como a viagem em que Gabriella se deleitou com os Açores. “Portugal é um país muito bonito”, diz ela. “No Norte já conheço muita coisa, mas ainda gostava de ver Sintra, Évora e sei que não vou conseguir, porque não tenho tempo”.
A culpa é dessa “condivisione”, mas sem lamentos. No discurso da freira italiana outra palavra comum é “adesso” e esse “agora” denuncia-lhe a convicção de que o passado não nos deve reter e o futuro não é garantido: “Só temos o hoje. O que fazemos adesso é que importa”. ■