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Síria
انتظر
Orientação da leitura: da direita para a esquerda
Correspondência latina: aintizar

Pronúncia fonética: intizáar

Língua: Árabe
Significado: Esperar
 
 
Preferes que te matem ou morrer à fome? Preferes morrer sob tiroteio ou sob os escombros de uma explosão? Preferes arriscar morrer no país que sempre conheceste ou arriscar viver numa terra nova da qual ignoras tudo? Preferes ser cadáver, ferido, prisioneiro ou refugiado? Ibrahim e Suriya deixaram a Síria em 2012. Dormiram no chão, tiveram filhos em solo estranho, foram presos e devolvidos a países que não os queriam, cortaram o mar para tentar mais uma vez. Em 2017 chegaram a um país de que nunca tinham ouvido falar e a sua vida agora está em Portugal. Parte dela, pelo menos... Porque Ibrahim tem outros três filhos no Curdistão e ainda continua à espera deles.
                    
Ibrahim Kenjo e Suriya Hussein
Naturais de Alepo, na Síria
43 e 31  anos

A Síria, antes da guerra, era como Portugal agora”. É assim que Ibrahim recorda o país de onde saiu em 2012, um ano após o início da guerra civil que continua a desfazer o país. No Português possível (e porque foi essa língua que escolheu para a conversa), conta que é de etnia curda e que resistiu em Alepo com a esposa Suriya até perceber que, se se deixassem ficar por lá, acabariam mortos pelas balas ou pela fome. “Não gostávamos do governo”, diz ela. “Não havia luz, não havia trabalho, não tínhamos escola, não tínhamos comida, tudo sempre fechado…”.

Deixaram o país numa viagem de autocarro em direção ao Líbano, onde viria a nascer o Ahmed, e, ao fim de um ano, seguiram daí para a Turquia. A pé. “Caminhar muito, muito, muito, pela floresta. Não levámos nada. Nada”, diz Suriya. Nesse país viveram dois anos e meio muito difíceis: “Foi mau. Dormir na terra porque eles não querem lá árabes. Muita, muita gente a dormir na terra”. A única memória positiva é que aí nasceu Marian, o que estimulou ainda mais a vontade de tentar melhor sorte. Seguiram-se então duas tentativas de chegar à Grécia por mar: a primeira frustrada, porque a polícia os detetou e foram devolvidos a terra; e a segunda bem-sucedida, após cinco horas de saltos e “muito, muito frio”, numa lancha semirrígida. No berço da civilização ocidental e do Mohammed ficariam mais 10 meses, até que a Associação pelo Prazer de Viver os acolhe em Mozelos. “Não sabia o que era Portugal, mas viemos pela organização. Agora gosto de Portugal, mas tudo muito difícil. Para tudo resposta é ‘espera’. Só espera, só espera!”, desabafa Ibrahim, gesticulando com frustração e angústia. Essa emotividade não é incomum na frequente crítica à burocracia portuguesa e, neste caso, tem uma motivação particularmente pessoal: o sírio é pai de três outras crianças que estão a viver no Curdistão, com a avó paterna, e, por muito que insista, não consegue que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras concretize a sua recolocação. “Só dizem ‘espera’, sempre ‘espera’. Em Portugal tudo tem muita espera”.

Isso não impede a família de apreciar um país onde o maior preconceito – pelo menos o mais vezes expresso – parece relacionar-se apenas com aparência exterior e sentido de moda. “Povo português muito fixe. Não tem este ser preto, este ser muçulmano, trata tudo igual”, diz Ibrahim. Suriya concorda, mas a verdade é que se ressente de algumas críticas à sua abaya (o vestido de corte simples que usa por cima de qualquer roupa) e ao seu hijab (o véu com que cobre os cabelos): “Em Mozelos estava tudo bem, ninguém falava disso. Aqui em Escapães dizem-me para tirar e eu não quero. Não vou tirar”. No restante, a família não tem encontrado dificuldades: as pessoas com que lidam aceitam que um muçulmano não pode comer carne de porco, nem produtos confecionados com sangue, nem beber álcool, e também percebem que as mulheres não podem tocar um homem nem para o mais breve dos cumprimentos. “Entre mulheres pode haver beijinhos”, sim, mas evite-se isso, por favor, que a Suriya ainda faz confusão o exagero de ósculos que por aqui se trocam.

Mãe de três filhos, a ainda jovem síria preferia mais companheirismo do que essa afabilidade física superficial. Quando a família chegou a Portugal, primeiro viveu alguns meses numa construção pré-fabricada em Mozelos – “num sítio só com árvores, não tinha pessoas, não quero isto, vamos para o UK” – e depois mudou-se para uma casa onde as relações com a comunidade incluíam passeios com o senhorio ao domingo e convites para os meninos irem brincar na morada dos vizinhos. Foi uma fase “muito boa” de que sente falta, porque em Escapães vive num sítio isolado e não há vizinhos com quem alegrar os dias.

A casa não deixa de ser, ainda assim, uma ajuda pela qual estão muito gratos. Quando ainda viviam em Mozelos, Ibrahim trocou o trabalho sazonal da apanha do mirtilo por um emprego fixo na fábrica de confeção de vestuário Locoluxo, em São João da Madeira, e a despesa mensal de 70 euros só com o passe de autocarro para essa viagem pesava demais no orçamento da família. “O trabalho do meu marido é para nove pessoas”, realça Suriya, fazendo contas às cinco bocas para alimentar em Portugal e ainda às quatro no Curdistão, sogra incluída. A experiência profissional de Ibrahim acabou por compensar: se na Síria sempre trabalhou como alfaiate, produzindo abayas de senhora com intrincadas aplicações decorativas, aqui rapidamente se tornou exímio nos detalhes mais complexos do fabrico de blusões para homem e o patrão compensou esse brio cedendo-lhe gratuitamente uma casa em Escapães, mais próxima do emprego.

Suriya ainda não arranjou trabalho. Há empresas recetivas a ultrapassar as reticências colocadas pelo seu ainda incipiente domínio da língua, mas as boas intenções desaparecem quando ela se nega a deixar de usar o tipo de traje que a sua religião impõe. Ocupa-se então a levar os meninos à escola e ao hóquei, a frequentar aulas de Português para migrantes, a tratar da horta onde cultiva tomate, laranja, pepino, beringela, alface, hortelã, cebola, alho, salsa, milho, curgete… Usa todos esses ingredientes em pratos sírios e também em culinária portuguesa, que considera “muito mais fácil” do que a árabe. Na sua rotina incluem-se ainda as cinco orações diárias a que Corão obriga e que o marido dispensa. Em horas definidas ao minuto com a ajuda de uma aplicação no telemóvel, Suriya segue o ritual: primeiro lava três vezes boca, nariz, orelhas, mãos, braços até ao cotovelo, tornozelos e pés, numa ablução purificativa; depois veste a abaya branca que reserva para a reza; depois dispõe o corpo em direção a Este, orientado para Meca; e então recita as orações em voz alta, lendo-as da direita para a esquerda no seu Corão finamente ilustrado. Pede a Alá saúde, sustento e proteção para a família, onde quer que ela esteja. Agradece-lhe a saúde, o sustento possível, a proteção obtida e até alegrias mais prosaicas, como as novas amizades e o ensino que os meninos recebem em Portugal. “A escola é muito boa. Professores muito fixes, aqui não bate nos meninos”, diz ela. E depois acrescenta, com um sorrisinho de olho piscado, como num segredo: “Gosto que crianças fiquem na escola todo o dia”.

Ahmed, Marian e Mohammed vão-se chegando à conversa, com ou sem brinquedos, de início algo reservados, depois muito calorosos e risonhos. Dizem coisinhas simples num Português perfeito, sem pronúncia que os distinga, enquanto o pai faz café e atende chamadas da outra família, pelo Whatsapp. Daqui a pouco os miúdos já estão ao colo dos pais, posam para as fotografias e a família parece plena… No olhar de Ibrahim é que parece detetar-se um brilho mais triste, como que hesitante ou culpado... Ele já tinha explicado: “O corpo está aqui, mas a cabeça está no Curdistão”. Até reunir os filhos todos, quanto mais terá que esperar? ■

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