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Chipre
Αγάπη
Correspondência latina: Agápi
Pronúncia fonética: agápi
Língua: Grego (do Chipre)
Significado: Amor
 
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Era uma vez uma casa com três meninas que tinham tanto de cosmopolitas, cultas e poliglotas como de calorosas, francas e criativas. Crescendo entre Portugal, o Chipre e Cabo Verde, fizeram-se férteis em imaginação, generosas em alegria e boa vontade, ávidas de conhecimento e aventura. Perante tanta autoconfiança e agitação, os pais limitavam-se a reinar como podiam. Soberanos, contudo, controlavam a ordem em que cada uma usava da palavra, alimentavam-nas com comida feita à pressa, confundiam-nas com desafios mentais e testes de destreza. Evitando conversas sobre racismo, chegavam a mandá-las dormir em tendas. O que é que se chama a isso?
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Cloé e Noa Soares
Naturais de Nikosia, no Chipre
8 e 4 anos
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Se houve timidez inicial, não durou mais do que um minuto. Em pouco tempo, três meninas saltavam por todo o lado à volta de uma mesa quadrada, comentando as histórias dos adultos, pedindo avaliação a desenhos, exibindo o coelho de estimação da família e mostrando os seus álbuns de recortes, enquanto a mais pequena de todas testava os pulmões gritando “Olha! Olha! Olha! Olha! Olha!” sem pruridos de redundância, até finalmente acedermos a apreciar-lhe a boneca que embalava no sofá. Noa é a mais nova e também quer que reparemos na sua roupa de princesa; Cloé é a irmã do meio, mais reservada e tem fama de atleta que vence qualquer corta-mato; Ísis é a mais velha, tem veia de artista e a imodéstia de avisar que é “muito esperta”. Só ela veio ao mundo em Portugal, mas, como as irmãs mais novas nasceram no Chipre, todas estudaram até meados de 2018 num colégio cipriota onde as línguas oficiais eram o Grego e o Inglês. Disparando palavras em várias línguas, sobrepõem-se umas às outras a partilhar memórias sobre os primeiros dias numa escola onde ninguém falava Português e onde o que mais se ouvia até era Russo. Cosmopolitas, habituaram-se a diálogos interculturais, mapas-mundo, bagagens, voos e passaportes. Em Santa Maria da Feira já se sentem em casa, mas, após uns segundos de hesitação, ainda confessam que o Chipre tinha outro carisma. “Lá tínhamos piscina”, “passeávamos mais”, “a praia estava logo ao lado”, “parecia férias” e outras coisas assim, que o clima mediterrânico terá ajudado a sublimar.

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Ísis, Cloé e Noa viveram nessa ilha porque o pai é jogador profissional de futebol e, após uma primeira passagem pelo AC Omonia, vestiu depois a camisola do AEL Limassol. Chama-se Marco Soares, nasceu em Portugal, tem 36 anos e é filho de pais cabo-verdianos que se conheceram em Setúbal, ele “badio” vindo de Santiago e ela “sampadjuda” da Ilha do Sal. Cresceu a falar crioulo, a ouvir e dançar funaná e quizomba, a comer cachupa e, inevitavelmente, a apaixonar-se pela réplica de Cabo Verde que se foi compondo no Vale da Amoreira. “Cresci num bairro social só à base de retornados e desde criança que senti sempre esse vínculo à terra dos meus pais”, afirma. E isso explicará que, mais tarde, na sua carreira desportiva, o apelo africano tenha falado mais alto.

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Marco iniciou-se aos seis anos nos “Pélézinhos de Setúbal” e, entretanto, foi pisando relvados pelo Desportivo de Portugal, o Sporting, o Barreirense, o União de Leiria e o Olhanense, antes de rumar ao CS Pandurii da Roménia, e ao Omónia. Depois seguiu-se o Primeiro de Agosto, em Angola, o clube de constituição militar onde os jogadores eram obrigados a treinar dentro da base, estavam proibidos de usar manga cava e às vezes só eram autorizados a entrar pela porta dos fundos – constrangimentos até menores considerando que, em campeonatos anteriores, quem levava cartão vermelho ao jogar pelo clube ficava sujeito a uma espécie de detenção e via-se impedido de sair para o exterior. Depois disso, o AEL Limassol foi uma estância balnear, o Feirense um paraíso e o Arouca um sossego. Entre essas diferentes escalas, impunha-se ainda a Seleção de Cabo Verde, que Marco integra há 15 anos e da qual é capitão há oito, com um sentido de dever mais explicado pelo coração do que pela razão ou pela certidão de nascimento. “Como não nasci lá, foi no Vale da Amoreira que me apaixonei por Cabo Verde. Eram as histórias dos meus pais, as músicas em casa, um vínculo sempre presente desde criança”, afirma.  A distância física não era, portanto, mais do que um detalhe, pelo que a ligação que o futebolista trazia sempre no espírito explica que, mesmo tendo sido convidado para a Seleção Sub20 de Portugal, ele tenha optado por se aproximar do país africano onde nasceram os seus pais. “Muita gente me pergunta como é que optei por Cabo Verde, mas há coisas que apenas se sentem. Não tenho outra explicação. Sentia que tinha que representar Cabo Verde e não estou nada arrependido: sou o capitão de uma seleção inteira e isso é um orgulho pra mim. Ganhei um grande amor àquela terra. No dia em que nos apurámos pela primeira para a Copa de África, havia mais gente na rua do que quando o país conseguiu a independência e isso marca-nos. Cria em nós uma ligação emocional que não desaparece”.

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Agora, quase todos os anos a família viaja até esse arquipélago, onde as meninas se transformam para encarnar o espírito de África. Andam descalças pelas ruas, deixam o cabelo mais solto, tentam aprender crioulo, falam com toda a gente… Nota-se-lhes um comportamento mais espontâneos e é isso, afinal, que a família lá procura. “Um cabo-verdiano da Europa é diferente de um que esteja mesmo em Cabo Verde. Lá há uma pureza tão grande… É comovente a simplicidade das pessoas, a naturalidade das coisas”, avalia Marco. Essa liberdade e os seus pequenos prazeres são, aliás, o que Marco mais valoriza desde que partiu a tíbia aos 25 anos, o que lhe destruiu os sonhos de ser contratado para jogar no Reino Unido e o obrigou a três cirurgias em 14 meses de paragem. “Essa lesão ajudou-me a crescer bastante”, confessa. “Forçou-me a amadurecer, a aprender o que conta mesmo na vida, a ver quem realmente está do nosso lado e se preocupa genuinamente connosco”.

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Nessa altura de convalescença já Cheila Soares, a mãe das meninas, estava com Marco. Nascida em Portugal a partir de genes angolanos e cabo-verdianos, conheceu o jogador no Barreiro quando ainda era adolescente, acabada de regressar de 10 anos de vida em Munique e Londres, onde estudou enquanto a mãe aí trabalhava. O namoro foi sempre – ainda é – particularmente empático e harmonioso, sereno e meigo. Parece ter a doçura dos bolos que Cheila cria num ápice, enquanto as miúdas contam aventuras e Marco valida a veracidade desses relatos. De repente sente-se a sala invadida pelo aroma a coco e na mesa surge uma criação decorada por morangos, no requinte apurado pelo curso de pastelaria que levou Cheila a um estágio no hotel Yeatman, em Gaia. Se calhar esses dotes culinários já eram sina… Um dos sobrenomes da chef é Fogaça e, em Santa Maria da Feira, isso parece obra do destino. Quando Marco jogava no Leiria era um colega de equipa que o abastecia do pão doce que tem fama de ser amuleto contra a peste negra; agora as fogaças compram-se na hora e parecem comprovar que era aqui mesmo que a família devia estar. “Fomos tão bem recebidos e as pessoas sempre tão simpáticas que adorei vir para cá. Não há problema nenhum se tiver que ficar aqui a viver para sempre”, diz a cake designer, após tantos anos de porto em porto, ao ritmo dos campeonatos do marido.

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A vida de Marco e Cheila está marcada por muitas manifestações de apreço, ditadas sobretudo pelo futebol, mas também tem momentos de discriminação racial, quando não é a bola a mandar. Na lista das primeiras, é ele que dá exemplos de momentos em que os afetos são avivados pelo desempenho desportivo, como se isso fosse tudo o que importa. “No Chipre os adeptos são mais fervorosos, muito mais do que os portugueses”, recorda. “É tudo muito bom quando corre bem e tudo muito mau quando corre mal. Se ganhamos o jogo ficam eufóricos e são capazes de cortar o trânsito para os jogadores pararem e se festejar na rua, mas, se perdemos, chegamos ao hotel e podem lá estar 200 pessoas de cara tapada à nossa espera, com ameaças”. Já entre Portugal e Angola, a principal diferença é esta: “Cá o futebol é mais evoluído a nível tático e mais organizado, mas em Angola o campeonato é muito agradável, com boas equipas e bastante animação nas bancadas, porque os adeptos vibram muito”.

Sempre tranquilo e calmo, Marco sabe que “racismo há em todo o lado,”, mas tenta relativizar. “Se eu ligo a isso e me deixo afetar, mais as pessoas que causam o distúrbio se sentem estimuladas. Claro que nem todos têm a mesma capacidade psicológica de aguentar o insulto, mas eu tento sempre ignorar. Onde me custa mais ver essas atitudes é dentro do campo, por parte de jogadores da equipa adversária, que até têm colegas de cor na sua equipa, mas se põem a atacar-nos ali, durante o jogo, só para desestabilizar”.

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Cheila irrita-se sobretudo com o excesso de familiaridade, com a invasão do espaço pessoal das filhas. “Sinto que é uma curiosidade excessiva. Porque é que estão sempre a mexer no cabelo das meninas?”. Há uma amiga de Cloé, de cabelo loiro e liso, que não resiste a apalpar-lhe as mechas escuras, volumosas e de caracóis apertados, mas aí é pelo contraste, pelo afeto genuíno de uma menina que admira os traços físicos da outra. “Agora aquela tendência para estar sempre a mexer no corpo da outra pessoa, sem respeito pelo seu espaço pessoal… É abusar e enerva-me”, diz Cheila. Cloé e Noa não seguem a conversa com grande atenção, mas aproveitam para deixar recado à mãe: “Irrita-nos mais andarmos de roupa igual”.

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Cheila e Marco chegam a recear a acutilância dos comentários das filhas. As miúdas têm dicções perfeitas, são muito atentas e curiosas, particularmente cultas para a sua idade e é esse o problema. “Como já viveram noutros países e viajam muito, falam do Big Ben como se fosse o semáforo ali ao lado! Acham estranho se uma criança disser que nunca andou de avião, ficam espantadas se uma colega não souber o que é sushi… Não queremos que elas façam ninguém sentir-se mal. Os outros miúdos não perderam essas oportunidades – elas é que já têm uma experiência de vida muito diferente do que é normal nesta idade”, explica o pai, que, um dia, depois de terminada a sua carreira no futebol, gostaria de ser educador-de-infância. “Ele tem mesmo um dom para isso”, confirma Cheila.

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As miúdas reforçam logo a ideia. Enquanto Cloé serve de açúcar os cafés e acerta na dose perfeita, Ísis elogia as qualidades do pai: “É muito bom a fazer puzzles, mas o que ele faz mesmo, mesmo bem é cabanas dentro de casa. Às vezes passamos uma tarde inteira dentro da cabana e é muito fixe”. Cheila certifica que em causa estão autênticas penthouses, equilibradas entre cadeiras e outros móveis, com tetos de cobertores e lençóis. “Quando está sol vamos para a varanda jogar à macaca, fazer corridas de sacos, brincar com piões e ioiôs, saltar à corda e fazer outros jogos antigos que as crianças agora já não usam”, diz Marco. Quando o tempo está pior, monta-se a tenda na sala ou estende-se um colchão de cama no meio dos sofás, e é aí que dormem os cinco, mais as bonecas da Noa, traquina-mor da casa.

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“Muito do nosso tempo passamo-lo juntos, só nós”, declaram Marco e Cheila. Já era assim antes da pandemia, sem que a isso fossem obrigados pelo dever legal de confinamento. Se o vêm fazendo por genética, amor ou mera coincidência de agendas, não interessa. Sempre retiraram felicidade das coisas pequenas e sentem que 5 é o número perfeito – a medida certa, o equilíbrio, a plenitude. â– 

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