Roménia
Binecuvântată
Pronúncia fonética: biné-cuvântáta
Língua: Romeno
Significado: Abençoada
Instinto e vontade. Lucidez e confiança. Tudo na vida de Ana-Bella se proporcionou como e quando devia – ou pelo menos ela assim acredita. Cresceu entre livros, num oásis campestre que a protegeu dos racionamentos vários do comunismo soviético, e cedo se lançou numa migração otimista, livre de amargores ou irrealismos. O seu Português é inclusivo, a sua dicção zen, a sua postura serena e doce, segura e satisfeita. “Há que deixar fluir”, diz ela. Porque, com mais ou menos coração, a vida decidirá o resto.
Ana-Bella Miheșan
Natural de Cluj-Napoca, na Roménia
40 anos
“É uma dor no meu coração”. Ana-Bella Miheșan vive em Portugal desde 2015 e ainda não encontrou ninguém que, ao descobrir que ela é natural da Roménia, saiba desse país mais do que uns clichets preconceituosos sobre ciganos. Dizerem-lhe que a sua terra natal é o berço do Drácula também mostra pouco conhecimento sobre o país, mas sempre é um upgrade, uma vez que foi na figura real de Vlad III, cujo cognome “Drakul” se traduz por “O Empalador”, que Bram Stoker se terá inspirado para criar a personagem fictícia do vampiro charmant com que vêm sonhando – em pesadelos ou versões mais húmidas – sucessivas gerações de bibliófilos e cinéfilos de todo o mundo. Nunca lhe souberam dizer que era da Roménia, por exemplo, o pioneiro da aviação Traian Vuja ou o biólogo criador da insulina Nicolae Paulescu. Não lhe falaram sequer do poeta fundador do dadaísmo Tristan Zara, do escultor vanguardista Constantin Brâncuși, da renomada soprano Angela Gheorghiu nem dessa icónica Nadia Comăneci que foi a primeira ginasta na história a obter a classificação máxima de 10 pontos numa edição dos Jogos Olímpicos.
A primeira lição de Ana-Bella é que na Roménia não são todos ciganos. Só uma percentagem da população é dessa etnia, tal como em Portugal, e, apesar dos esforços de integração desenvolvidos durante a ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, a realidade é que, após a queda do regime em 1989, essa comunidade voltou a um estilo de vida muito próprio, entre a mendicância nómada e a abundância sedentária que famílias mais abastadas exibem arquitetonicamente em palácios-ciganos. Depois, Ana-Bella esclarece porque é que não é de surpreender que a Roménia tenha dado ao mundo diversas personalidades de proa em diversas áreas da ciência e da cultura: “Além de o país ter uma cultura rica e uma paisagem muito bonita, as pessoas são muito cultas, bem-formadas e educadas”.
Ana-Bella encaixa nesse retrato: é fisioterapeuta de formação, seguiu essa carreira impulsionada pela mãe (que quis ser médica num tempo em que a família só autorizava essa escolha para homens) e fala diversas línguas, entre as quais não apenas o Romeno, Inglês e Grego de base académica, mas também o Espanhol que aprendeu ao ver telenovelas, o Italiano que adquiriu ao trabalhar numa empresa dessa nacionalidade e o Português que vem melhorando desde que se instalou em Santa Maria da Feira. Não é de estranhar, portanto, que ao conversar misture dois ou três desses idiomas, de uma forma que, pelo menos a ouvidos latinos, soa sempre natural.
As questões da educação moldaram-na desde a infância. Por um lado, viveu até aos 11 anos num regime em que o aproveitamento escolar era mais encarado como reflexo do carácter e da têmpera de um indivíduo, e complementou o rigor desse ensino formal com a liberdade intelectual doméstica proporcionada pelos seus pais, que sempre procuraram estimular nos cinco filhos a curiosidade e a pesquisa nas “duas bibliotecas enormes que havia em casa”. Engenheiro químico, o pai era “comunista convicto”, mas Ana-Bella supõe que ele não apoiaria o regime se tivesse experimentado as agruras que afetaram outras famílias. “Nunca sentimos muito as dores do comunismo porque nunca nos faltou o que comer. Vivíamos parte do ano na campagna, tínhamos em casa tudo de que precisávamos - carne, ovos, vegetais – e a minha mãe fazia tudo – sumos de fruta, doces para o pão, etc. Sei que havia gente que passava horas em filas porque a comida estava racionada e só podiam comprar uma porção de leite e de pão para cada família, mas a nós nunca faltou nada. Se tivesse faltado, talvez fosse diferente…”.
Dentro da mesma lógica, não foi em busca de uma vida melhor que Ana-Bella deixou a Roménia. A sua primeira experiência como emigrante foi na Grécia, para onde dois irmãos já se tinham mudado. Muito unidos, os manos sentiam saudades uns dos outros e em 2008 a fisioterapeuta decidiu passar a viver em Atenas até para acompanhar os sobrinhos, trabalhando então como guia turística para grupos de romenos em passeio pelas propostas balneares da cidade de Katerini. “Também fiz muita fisioterapia lá, inclusive para duas equipas de futebol, e até estava a pensar abrir o meu próprio gabinete”, recorda. A situação económica do país já estava a agravar-se e os receios acumulavam-se, mas não foi isso que afetou a romena. O que bateu mais forte e alterou tudo novamente foi o amor.
A culpa é do Leonel. Ana-Bella conhecera o designer de moldes português na Roménia em 2006, quando ele acompanhou amigos futebolistas numa deslocação competitiva ao país, e a ligação emocional foi rápida e intensa. Ambos reconhecem hoje que, “sim, foi amor à primeira-vista” e dizem-no sem ironia, com uma segurança serena. Essa certeza pode advir do facto de o relacionamento ter tido dois ciclos. Primeiro, o namoro à distância não foi fácil e a separação deu-se naturalmente ao fim de pouco tempo. Só anos mais tarde, quando um cunhado de Ana-Bella que era “treinador e louco por futebol” lhe pediu que contactasse o ex-namorado português por causa de “qualquer coisa relacionada com o Benfica”, é que os ex-namorados se redescobriram emocionalmente mais disponíveis e amadurecidos. “Talvez tenha sido só uma questão de timing… Em 2006 não era o momento certo para nós, mas em 2014 retomámos o contacto, ficámos mais unidos e, como separados ia ser outra vez uma catástrofe, decidimos juntar-nos”. Quem emigrou foi Ana-Bella – “senti que, como mulher, devia ser eu a mudar-me”, diz ela – e, depois de uma visita à Roménia para explicar tudo aos pais, em 2015 ela ruma ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro.
“Era o dia 6 de dezembro e eu estava com uma valise tão grande, tão grande, que só pensava: ‘Será que é mesmo isto que eu quero?’”, recorda. “Estava com um pouquito de medo, ia mudar a minha vida inteira… Mas quando vi o Leo chegar ao longe com aquele sorriso bonito, passou tudo”. Ana-Bella nunca mais sentiu dúvidas e, ao analisar o seu próprio percurso, considera que tudo se deu como e quando devia. “Não foi uma mudança difícil. Foi tudo a fluir, como sempre aconteceu na minha vida. Eu tinha um instinto muito forte, sentia que este era mesmo o meu homem… Não sei…”. (De repente, ele larga o futebol da televisão e pergunta-lhe da outra ponta da sala: “Não sabes? Já olhaste bem p’ra mim?”. Riem-se os dois. Ele estava atento.)
O acolhimento da terra estranha foi irrepreensível. A família de Leonel recebeu bem a noiva estrangeira, os amigos dele rapidamente se tornaram os companheiros dela, e a confusão maior foi só a da Língua. “Ao início era caótico”, avalia Ana-Bella. “Com as línguas todas que sei, misturava tudo e até grego cheguei a falar aqui. Depois desistia e falava mais em Espanhol e Inglês, porque não tinha confiança”. Os programas televisivos sobre culinária lá foram ajudando e, em 2017, pôs-se finalmente ordem na casa: com o nascimento de Maria, passou a falar-se apenas, bem ou mal, Português.
Xenofobia, por cá, não houve – até porque essa nunca parece aplicar-se a mulheres bonitas – e, “entre pessoas muito queridas”, os únicos desconfortos que a fisioterapeuta romena sentiu na Feira foram os burocráticos. Nas estações de correio, por exemplo, não podia levantar encomendas porque, como comprovativo de identidade, só dispunha do cartão de cidadania romeno e esse não integra assinatura, pelo que apenas com a intervenção municipal do Espaço Migrações se conseguiu ultrapassar a intransigência administrativa portuguesa.
Entretanto, a vida de Ana-Bella passa-se entre a lida doméstica, o acompanhamento da pequena e animada Maria, aulas de zumba e bodyjumping, e, claro, sessões de fisioterapia e massoterapia em que a romena aplica uma manipulação profunda e as suas melhores energias. Em certos dias, refugia-se ainda em igrejas portuguesas que, embora não sendo ortodoxas como as do seu país-natal, lhe garantem mesmo assim a tranquilidade que procura. “Qualquer igreja serve quando o que se quer é o sentimento de paz. Podemos rezar a Deus em qualquer lugar”, proclama.
De vez em quando, ainda tentam adivinhar-lhe a origem pelo seu Português com sotaque. Há quem a considere espanhola, brasileira ou de qualquer outra nacionalidade que não a romena e, quando Ana-Bella dá a resposta correta, a reação raramente é boa. “Fico triste porque não é verdade aquilo que as pessoas pensam da Roménia e eu não gosto que falem de aparências”, lamenta. “Não devemos falar do que não conhecemos porque as pessoas são muito influenciáveis e depois ficam com ideias erradas, como a de que a Roménia só tem ciganos. Claro que isso não é verdade! Somos muito humildes e não tivemos muitas oportunidades políticas para desenvolvimento, mas o país tem quase tudo, muitas coisas boas, personalidades fortes e, a cada ano que vou lá, está tudo mais moderno e mais espetacular”.
Apesar das suas falhas de cultura geopolítica, Portugal tem sido um bom anfitrião. Ana-Bella diz que foi bem acolhida, que se sente “muito bem-integrada cá” e que Santa Maria da Feira é “uma cidade maravilha, com tranquilidade, com pessoas limpas e sem acontecimentos violentos como assaltos e coisas assim”. Outras palavas romenas que traduzem a sua vida em solo luso são “siguranţă”, “libertate” e “încredere” – segurança, liberdade e confiança – mas a fisioterapeuta continua a ter em “binecuvântată” aquela que literal e rigorosamente representa a sua vida. É “abençoada”, diz ela. Ao olhar para os seus apontamentos sobre experiências, datas e sensações que não queria esquecer-se de referir na conversa, Ana-Bella sente que essa lista tem tanto de redutora como de justa. “Podia dizer muita coisa, mas o principal é que tive uma sorte muito boa e só posso agradecer”, assegura. “Sempre fui para onde o meu coração estivesse bem e ele está muito bem aqui”. ■