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O projeto

Se a palavra está em todo o lado, porque não haverá também de decorar o espaço urbano? Porque é que as palavras que vemos na rua são apenas as da sinalética a definir permissões ou proibições, as de reclamos que identificam lojas e serviços, as de cartazes de empreitadas e coisas que nos querem vender? Porque é que as palavras mais bonitas que vemos no exterior são versos pequenos ou slogans de intervenção escritos a medo em muros que não os autorizaram? Porque é que, à exceção da moda que vem apresentando o nome de cidades em letras sólidas de alumínio, o espaço púbico não tem também palavras que nos façam relaxar, aprender e evoluir?

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Estas eram questões com as quais já nos debatíamos há muito e, quando o Imaginarius lançou em 2019 o seu habitual apelo à criação artística, a aposta do festival no tema “O Mito” parecia um sinal: a Torre de Babel tinha sido a primeira tentativa de explicação para a origem das diferentes línguas do mundo e tornou-se também uma oportunidade para darmos atenção à Palavra como matéria artística que não tem que estar confinada apenas a livros, letras musicais e idênticos suportes de usufruto essencialmente privado.

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A lenda surgiu pela primeira vez no Livro do Génesis e começava por rezar assim: depois do Grande Dilúvio, quando todas as sociedades do mundo ainda falavam o mesmo idioma, populações da Babilónia uniram-se para construir uma torre-cidade que, elevando-se a inéditas alturas, permitisse aos seus habitantes escaparem a novas cheias. A empreitada correu tão bem que Deus a considerou um ataque à sua omnipotência e, para frustrar tão petulante blasfémia, criou então uma série de idiomas diferentes, para que os construtores não mais se pudessem compreender e, mesmo o Homem querendo, a obra não nascesse.

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Ficou inacabada a Torre de Babel, continuaram os povos a viver sem nunca compreenderem de forma imediata – ou aceitarem – os estranhos que lhes surgissem ao caminho e só com a evolução das sociedades e do ensino é que encontrámos soluções – demoradas e trabalhosas – para contornar o contínuo obstáculo que é uma língua diferente. Mérito dos mesmos povos, é certo que aulas, dicionários e livros ajudaram. Mesmo sem esses recursos, o convívio social também sempre garantiu graduais entendimentos. Mas nunca como na passagem do século XX para o XXI, com o advento da internet, do telemóvel e dos sites e aplicações que em qualquer local substituem as antigas enciclopédias por tradutores poliglotas ao alcance de apenas algumas digitações ou vocalizações, foi tão evidente que a Torre de Babel está reduzida a despojos, praticamente incinerada. Quando um sírio, um chinês e um português entram num bar, hoje todos podem conversar em línguas diferentes se tiverem internet que os deixe aceder ao Google Translator.

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A melhor forma de demonstrar como Deus não previu tudo – ou também se soube adaptar – era refletir sobre o próprio caso de Santa Maria da Feira: só neste município, os dados da autarquia indicavam que em 2019 viviam aí quase 1.400 cidadãos de mais de 60 nacionalidades. Sem critérios rígidos porque o objetivo do trabalho a desenvolver não era jornalístico e muito menos estatístico, escolhemos alguns desses países para um primeiro contacto, de acordo com uma seleção que privilegiou o peso da sua representatividade no território, as dificuldades da sua adaptação linguística e até o exotismo das suas origens. Entre os migrantes que estiveram disponíveis para nos contarem a sua história, escolhemos 11 famílias e foram elas que nos deram as palavras que compõem agora este projeto. Quanto à covid-19, optámos por não lhe dar mais tempo de antena; bastou que nos tenha sujeitado ao cancelamento do Imaginarius de 2020 e a frustrantes restrições mesmo em 2021, com a sua imposição de circuitos controlados e lotações minimais.

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Já antes da pandemia, contudo, o “Despojos da Torre de Babel” se propunha combinar um formato presencial e online, em Português e Inglês. Entre as árvores da Quinta do Castelo, o público fica a conhecer a versão mais estética do projeto: uma palavra na língua nativa de cada imigrante que participou connosco nesta descoberta (num incentivo de aprendizagem mútua que exige um esforço tão mínimo da nossa parte quando eles ainda continuam a tentar aprender um Português Europeu inteiro); um pequeno texto sobre a história dessas famílias (com liberdades literárias como a ironia e o duplo sentido, numa tentativa pedagógica de incentivar o público a nunca se ficar apenas pelos títulos ou por excertos retirados ao contexto global da mensagem); e uma indicação remetendo para a página de internet do projeto (onde esses conteúdos são clarificados e desenvolvidos). No site desvendam-se então as epopeias pessoais que justificam o significado especial dessas palavras na vida dos seus protagonistas, com o grau de detalhe permitido pela experiência ou pelo recato de cada um. As fotografias retratam o seu quotidiano, evidenciam contrastes que persistem apesar da aculturação, expõem semelhanças que permanecem apesar da mudança de latitude. Os textos têm o seu próprio sentido e exibem ainda sublinhados dispersos que, mais do que destacar pormenores da narrativa-base, proporcionam leituras autónomas de palavras e expressões com particular poder imagético.

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Se a palavra está em todo o lado, a Língua faz parte de tudo – faz parte, pelo menos, da conceção que fazemos de tudo com que nos deparamos. Podemos até comunicar sem uso da linguagem verbal ou gestual, mas o que retiramos dessas interações só existe quando se torna pensamento – e o facto é que não pensamos sem palavras. O que elas demonstram neste projeto, portanto, é que, independentemente de quaisquer especificidades geográficas, culturais ou linguísticas, o recurso mais valioso para a integração – para o diálogo fluido que Deus não queria em Babel – é o conhecimento do outro. Quando a base é de boa-fé, as palavras revelam, as palavras explicam, as palavras aproximam, ajudam, inspiram… Fomos conhecer o outro, deixámos que ele nos conhecesse a nós, maravilhámo-nos com a descoberta e estamos gratos. Não o teríamos conseguido sem palavras. â– 

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