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França
Chaleur
Pronúncia fonética: chá-lôrr
Língua: Francês
Significado: Calor
 
Diz a tradição que a saúde é a justa medida entre o calor e o frio, e também foi nesse equilíbrio que Simon e Joelle encontraram a felicidade. Enquanto nos Pirenéus batem leve, levemente os flocos de neve que arrefecem corpo e espírito de quem se debate assim, o casal francês aconchega-se em solo lusitano, provando que a vida é vinho, espuma, fermento, e que o sonho é para cumprir como bola colorida em perpétuo movimento. Ambos desconhecem Augusto Gil e António Gedeão, mas já inscreveram o clima quente e o calor humano na ode ao seu segundo país. Reconhecem neste nobre povo o esplendor de Portugal – nação valente e imortal, lenda esculpida sobre a terra e sobre o mar, eco de arrojo contra as injúrias da sorte, e ainda memória, presente e porvir.
Simon Gringras e Joelle Clarens
Naturais de Toulouse e Tarbes, em França
73 e 65 anos

De um quarto andar com grandes portadas de vidro para o exterior, Simon e Joelle têm vista para as árvores e para o sossego. O ritmo de Paços de Brandão é tranquilo e, perto da Quinta do Engenho Novo, as matas escondem a maioria da atividade industrial, denunciando civilização só pelos carros que ao longe vão rasgando as manchas de verde e terra. Ela foi bem explícita quando decidiram mudar-se para Portugal: o apartamento tinha que envolver uma localização alta, sem vista para a estrada ou para lugares de estacionamento; a zona tinha que ser sossegada e silenciosa, mas próxima de Aveiro e Porto; e a casa tinha que incluir uma cozinha branca, porque móveis de madeira já bastavam os de França. “Se você soubesse o que sofri com os requisitos dela…! Mais ce que les femmes veux, Dieu veut!”, diz ele em Francês, numa adaptação que sabe que em Portugal corresponde mais a “o homem põe e a mulher dispõe”, porque Deus por cá pode pouco perante a vontade delas.

O casal encara a conversa para o Imaginarius quase como um ensaio de Portugalidade – algo very typical que só confere mais colorido a toda a experiência que, durante seis meses em cada ano, os leva a trocar a neve e o frio dos Pirenéus pelas duas classes de temperatura que há em Portugal: “o calor da meteorologia e o calor humano da hospitalidade”. Ainda sabem muito pouco da língua nacional porque, como nota Joelle, “a concentração é cada vez mais difícil com o passar da idade”, mas pela casa há livros que comprovam o empenho de ambos nessa aprendizagem, como dicionários, gramáticas e guias de conversação rápida. “Tranquillité”, “securité” e “repos” são palavras francesas que repetem no seu discurso, ao lembrar as principais sensações motivadas pelo país para o qual emigraram.

Simon veio cá a primeira vez há uns 20 anos, era então ainda casado, e já nessa altura adorou o nosso tempo ameno, a comida tradicional e as “vagas altas, fortes e maravilhosas” da costa atlântica. Ainda trabalhava como agente imobiliário, mas, quando mais tarde se viu divorciado e reformado, começou a acarinhar a ideia de se refugiar em solo lusitano e aí aproveitar dos prazeres que só a idade sénior permite. Primeiro, tratou, contudo, de arranjar namorada. Estava-se em 2005 e ainda não havia Tinder, mas o MSN da Microsoft já provara como era fácil fazer amizades na internet e foi assim que ele conheceu a assistente de hotelaria com quem acabaria por partilhar a vida. Só agora reparam que foram pioneiros no romantismo virtual – novamente o calor da paixão, lá está! – e riem-se juntos quando se recordam da expectativa do primeiro encontro real, após anos de conversa online. Apaixonados, começaram por namorar à distância e diz ele que nem custou muito, porque, “quando se ama, a distância não conta”. Convencidos, passaram a viver juntos em casa dela, em Tournous-Devant, e, cúmplices, até dos invernos nevosos passaram a reclamar em uníssono. “É que eu não me dou esmo com o frio! Não vale a pena!”, reconhece Joelle.

Quando um dia a televisão francesa passa um documentário sobre Aveiro, ela enamora-se então outra vez, decide que será esse o destino da próxima viagem e, ao dar por si a passear efetivamente nos canais da ria e junto às casinhas riscadas da Costa Nova, consolida a ideia de que a vida não é para ser passada no gelo. “Foi aí que eu vendi a minha casa para poder comprar um apartamento em Portugal”, conta Simon. “Agora ficamos cá de outubro a abril, quando em França está demasiado frio, e só vamos para lá no Verão, quando dá para aproveitar a vida mais agradável no campo, entre os pássaros e as árvores”.

Vantagens nessa fona de voos, malas e bagagens há muitas: a mudança mantém os dois bisavós mais ativos e animados, os encontros com a família tornam-se mais intensos seja num país ou no outro, ele enriqueceu o seu repertório culinário com pratos portugueses como pernil assado e caldo verde, ela sente-se uma eterna turista na sua avidez de conhecer diferentes cidades portuguesas. “A primeira vez que estive em Portugal foi Faro que conheci, mas não gostei”, diz, cuidadosa, procurando não magoar. “Aquilo não é Portugal – é mais os Estados Unidos, Nice ou Saint-Tropez. C’est pas typique! O nosso Portugal é isto: é Paços de Brandão, o Porto, Viseu…”.

Não sabem explicar como acabaram por fixar-se em Santa Maria da Feira, em Junho de 2018. Terá sido pela localização central do concelho, a meio caminho entre a Invicta e a terra dos ovos moles? Porque assim ficavam relativamente perto de amigos instalados em Braga sem perderem o acesso fácil à praia? Porque o apartamento em Paços foi aquele que mais os convenceu na sua busca imobiliária? Porque o destino tem sentido de humor, como se nota por fazê-los residir precisamente no município onde Joelle veio encontrar a mesmíssima cabeleireira que lhe tratava do penteado em Tarbes e que agora tem um salão nessa metrópole que é Lourosa? “C’est Patrícia Pereira”, diz a francesa, rindo-se. “Le monde est petit!”. Sim, quase um T1.

Apontando o trânsito da Ponte da Arrábida em hora de ponta como “a coisa pior e mais horrível” com que se depararam em Portugal, o certo é que Simon e Joelle se sentem confortáveis e acarinhados por cá. Por um lado, encontram em Santa Maria da Feira um ambiente mais seguro do que em Lisboa e no Porto, vivendo o seu quotidiano sem receio de assaltos. Por outro, levam agora uma vida com mais folga financeira, já que “aqui os bens essenciais, como os produtos de mercearia, são 40% mais baratos do que em França”. Há ainda a vantagem de a cada passeio se depararem com o pitoresco de um país novo – “os mercados ao ar livre, as senhoras vestidas de preto…” – e de sentirem os dias mais longos e calmos graças às práticas comerciais vigentes – já que “os supermercados só fecham à meia-noite e isso é ótimo para o dia render mais e não se ter que andar com pressas”. O melhor de tudo, ainda assim, é que “as pessoas são mesmo muito, muito gentis”. Até na Ponte da Arrábida, em hora de ponta. “Tivemos uma avaria na faixa central, mesmo a meio da ponte, e ficámos lá a interromper o trânsito todo, mas ninguém apitou”, surpreende-se Simon. “Ligámos à assistência e eles vieram rápido, mas ainda lá ficámos parados uns 10 minutos e ninguém nos tratou mal. Em França toda a gente se teria posto a apitar!”.

É na rotina do quotidiano, contudo, que os dois franceses melhor identificam as diferenças que distinguem o essencial do comportamento cívico de um país e do outro. “Aqui ficámos sempre espantados com a seriedade e simpatia das pessoas”, declara Simon. “Ainda no outro dia um vizinho me viu a trazer um armário pequeno para casa e ofereceu-se para mo levar para o elevador. Ainda pensei que ele só fosse ajudar um bocadinho e isso já era ótimo, mas ele levou o armário o caminho todo e isso é fenomenal!”. Nos dias em que o septuagenário precisa de bengala para andar na rua, as delicadezas continuam. “Pedi um chá na facetaria do Pingo Doce e, como eu estava de cana, uma senhora trouxe-me a bandeja até à mesa. E em França não é assim!”.

Simon e Joelle perdem um bocadinho a graça quando se questionam se essa cortesia não será motivada pela sua pronúncia estrangeira e por serem encarados não como residentes, mas como turistas… Preferem pensar que não e acreditar que essas manifestações de cidadania são genuínas, até porque isso lhes proporciona experiências inéditas como serem convidados pelo empregado de um restaurante a visitar a cozinha, para aí escolherem os peixes que ainda não conseguem identificar pelo nome no cardápio. Já perceberam que a Língua não é um problema. “Em Portugal todos falam Inglês e, mesmo quem não fala, ou consegue perceber Francês, ou entende o meu pouco Espanhol, ou vai desenrascando tudo por sinais, como aconteceu uma vez numa farmácia, onde ninguém falava nada a não ser Português, mas esforçaram-se por me compreender e eu acabei por sair de lá com um medicamento realmente muito bom”, garante Joelle.

Entre essa humanidade toda, só há uma coisa que o casal não compreende: a resistência dos portugueses que, tendo sido emigrantes em França, evitam que se saiba que foi lá que compuseram as suas vidas, para agora beneficiarem em Portugal de uma reforma mais cómoda e generosa. “Acontece-nos muitas vezes estarmos ao lado de alguém que faz de conta que não sabe Francês, mas que depois acaba por nos ajudar, um bocado a contragosto, porque percebe realmente tudo o que nós dizemos”, analisa Simon. “Acho que são aquelas pessoas que trabalharam em França muitos anos na construção civil, por exemplo, e agora não querem lembrar-se disso ou preferem que não se saiba. Custa-nos perceber essa atitude… Será vergonha? Será antipatia pelos franceses, que são preguiçosos, não estão para certos trabalhos e podem ter sido rudes com eles? Estes ex-emigrantes deviam assumir o seu passado. Trabalharam duro em áreas muito difíceis, fizeram dinheiro, construíram cá as suas casas, ajudaram a família e hoje vivem melhor do que viveram os pais deles. Foram corajosos, subiram na vida e deviam ter orgulho disso”. É que, de facto, muitos mais se vangloriam de muito menos. ■

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